Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7160/18.2S8STB.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória, antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova.
2 – Os Tribunais Superiores entendem que os recursos sobre a impugnação da matéria de facto têm sempre carácter ou natureza instrumental, devendo as questões submetidas à apreciação poder repercutir-se, de forma útil e efectiva, na decisão a proferir pelo Tribunal «ad quem», de modo alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto. De outro modo, no plano formal, não haverá interesse processual em promover a revisão dos factos controvertidos.
3 – Até realização da partilha de bens comuns, a decisão de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos ex-cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao ex-membro do casal privado do uso daquele bem ou, alternativamente, a definição modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios.
4 – Não se provando a necessidade da habitação, a atribuição da casa de morada da família pode ser alterada com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a modificação da situação vigente, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão judicial já não acautele ou deixe de precaver, com equidade, os interesses de um dos ex-cônjuges.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 7160/18.2S8STB.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Família e Menores de Setúbal – J3
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge proposta por (…) contra (…), esta veio interpor recurso da sentença.
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Realizou-se tentativa de conciliação, na qual Autor e Ré manifestaram o propósito comum de se divorciarem. Para além disso, ambos declararam prescindir de alimentos e indicaram a casa de morada de família como bem comum mas não chegaram a acordo quanto ao destino da mesma, nem relativamente à indicação de outros bens comuns.
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O Autor e a Ré apresentaram alegações e indicaram prova.
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Realizada audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decretou o divórcio entre o Autor (…) e a Ré (…), fixando as seguintes consequências do mesmo:
1. Admito as relações de bens comuns apresentadas por ambas as partes.
2. As partes ficam reciprocamente dispensadas de prestar alimentos.
3. O direito de utilização da casa que foi a de morada de família, sita na Urbanização Quinta da (…), Praceta do (…), nº 6, em (…), não é atribuído a nenhuma das partes em exclusivo, podendo ambas exercer os direitos inerentes à sua condição de proprietários.
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A requerida não se conformou com a referida decisão e as alegações apresentadas continham as seguintes conclusões:
1. A Recorrente impugna a decisão relativa à matéria de facto, pedindo a reapreciação da prova gravada, bem como a decisão de direito, na parte em que, decretando o divórcio entre A. e R., não atribuiu a nenhuma das partes, em exclusivo, o direito de utilização da casa que foi morada de família, sita na Urbanização Quinta da (…), Praceta do (…), nº 6, em (…), consignando que ambas as partes podem exercer os direitos inerentes à sua condição de proprietários da mesma, assim negando à Ré o direito a uma compensação pecuniária pelo uso exclusivo que daquela casa fez e continua a fazer o Autor.
2. Nas suas alegações o Autor pediu que o direito de utilização daquela casa lhe fosse atribuído exclusivamente, sem qualquer contrapartida para com a R.
3. Aliás, significativamente, o A. nada alegou quanto à condição económica das partes e quanto às características da casa de morada de família – e, como os autos bem espelham, só depois de intimado pelo Tribunal viria a juntar prova sobre a sua situação económica...
4. Por seu turno, a Ré não se opôs a que aquele direito fosse atribuído ao Autor, mas peticionou que, por tal facto, lhe fosse atribuída uma compensação mensal de valor não inferior a € 500,00 mensais.
5. Para tanto, a Ré organizou as suas alegações (que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, conforme articulado de 19-12-2018, com a Referência 88693458) em duas partes: uma em que descreveu as circunstâncias que levaram à cessação da coabitação e tornaram a mesma insuportável, forçando a sua saída do lar conjugal, e outra em que apresentou ao Tribunal a condição económica das partes e as características da casa de morada de família.
6. E concluiu dizendo que: “A valoração prudencial das descritas circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, bem como a ponderação das circunstâncias que determinaram a cessação da coabitação, justificam que, também por razões de equidade, o valor da compensação mensal a atribuir à Ré pelo deferimento do uso da sempre aludida casa ao Autor, até à partilha ou venda da mesma a terceiros, não seja inferior a € 500,00 por mês – o que se requer” (cfr. artigo 102 das alegações).
7. A pretensão da Ré é conforme à jurisprudência dominante – Cfr., entre outros, os seguintes Acórdãos: Ac. Relação do Porto de 5.02.2013, in: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/9fa6e9a8a86eb33180257b24004c1fc0?OpenDocument&Highlight=0,1793.% C2% BA
Ac. Relação de Lisboa de 22.02.2018, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1511ca0d78413cb98025826 b002bf0a1?OpenDocument
Ac. Rel. de Guimarães, de 28.09.2017, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/884CB2BA7FDCF317802581CA0057AFC1
8. Sucede que, depois de elencar as questões a decidir, entre elas o do direito de utilização da casa de morada de família, na decisão sobre a matéria de facto o Tribunal recorrido apenas deu como provados aqueles que entendeu relevantes para a decisão da causa (cfr. factos 1 a 19 dos factos provados).
9. Sendo certo que, entendeu como não sendo relevantes para a decisão da causa todos os factos relacionados com a cessação da coabitação entre as partes ou os alegados como causas do abandono da casa de morada de família por parte da Ré.
10. Agiu ao arrepio da jurisprudência e em clara violação do disposto no nº 4 do artigo 607º do CPC. Com efeito, à decisão sobre o direito de utilização da casa de morada de família não é indiferente a ponderação dos factos relacionados com a cessação da coabitação ou, neste caso, dos alegados como causas do abandono da casa de morada de família por parte da Ré. Cfr., a título de exemplo, Acórdão da Relação de Lisboa, de 9.02.2008, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497 eec/da844248286e534a802575440059022d?OpenDocument&Highlight= 0,1793.%C2%BA.
11. Ao desconsiderar toda aquela matéria de facto, o Tribunal chegou a uma solução que é, no mínimo, absurda. E ilegal. Com efeito,
12. De acordo com a norma e jurisprudência citadas, bem como do disposto nos artigos nº 2 do artigo 1779º e nos nºs 3 e 4 do artigo 1778º-A, na parte aplicável, todos do Código Civil, para fixar as consequências do divórcio quanto ao direito de utilização da casa de morada de família, o Tribunal não podia deixar de ter em consideração os factos supra referidos, sendo que os abaixo indicados, perante a prova testemunhal sobre os mesmos produzida, devem ser considerados como provados, pela sua relevância para a justa decisão da causa e face à prova produzida. Assim:
13. Os factos 2, 3, 4, 32, 33, 35, 44 e 47 das alegações da Ré foram incorrectamente julgados, a saber:
2. Há muito que a vida do casal era pautada por comportamentos do Autor de grande desequilíbrio emocional, de muita intolerância, falta de respeito, de atenção e companheirismo, quer para com a R., quer para com o filho do casal.
3. O A. revela uma personalidade rígida, muito autoritária, militarista, não aceitando sobre qualquer assunto ou problema outra opinião que não seja a sua.
4. O que faz que, com frequência, uma discussão termine, por parte do Autor, aos gritos, com ofensas verbais – o que sempre acarretou para a Ré e o seu filho, uma grande tortura psicológica.
32. (O Autor) Discutia com ela (a Ré) frequentemente.
33. Chamava-lhe (...) maluca.
35. E tudo sempre em voz alta, aos gritos.
44. Perante os maus tratos descritos, a Ré começou a ter medo do A.
47. Por não poder suportar mais o mau viver que o Autor lhe infligia, em 3 de Setembro de 2018, a Ré viu-se forçada a deixar o domicílio conjugal e foi acolher-se em casa de sua irmã, (…).
14. Tais factos devem ser dados como provados, como decorre das declarações da mesma (…), cujas declarações foram gravadas no Habilus Media Studio, na sessão de 24.04.2019, de 00:00:01 a 00:36:10) e, mais concretamente, desde 00:10:01 a 00:11:23 e transcritas supra.
15. No mesmo sentido, de forma mais precisa e porque presenciou o que declara, foi o depoimento do filho do casal (…), cujas declarações foram gravadas na sessão de 30.05.2019, no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:38:52, e mais concretamente de 00:02:00 a 00:05:41 e de 00:31:50 a 00:33:17: e transcritas supra.
16. Os factos 47 a 55 das alegações da Ré foram incorrectamente julgados, a saber:
47. Por não poder suportar mais o mau viver que o A. lhe infligia, em 3 de Setembro de 2018, a Ré viu-se forçada a deixar o domicílio conjugal e foi acolher-se em casa de sua irmã, (…).
48. Aliás, pelos motivos supra referidos, já em Setembro de 2014, a Ré fora viver com o filho para a casa da irmã.
49. Regressou ao domicílio conjugal quinze dias depois.
50. Mas o (…) disse que não queria voltar, porque na casa da tia tinha paz!...
51. O (…) regressou um mês depois, por insistência da Ré.
52. E, em Julho de 2015, porque o Autor persistiu na sua atitude e após nova discussão provocada pelo mesmo, as partes estiveram a viver em casas separadas durante duas semanas, tendo-se reconciliado por o Autor ter prometido que ia mudar os seus comportamentos.
53. Na altura, o (…) disse à mãe: com o pai nunca se viverá bem.
54. E, pouco tempo depois, foi viver para casa da namorada…
55. Em suma, paulatinamente, com os seus recorrentes comportamentos, o Autor foi transformando a vida conjugal num inferno, tornando a coabitação insuportável.
17. Tais factos devem ser dados como provados, como decorre do depoimento do filho do casal (…), cujas declarações foram gravadas na sessão de 30.05.2019, no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:38:52, e mais concretamente de 00:07:21 a 00:08:25: e transcritas supra.
18. Para a prova dos mesmos devem igualmente ser consideradas as declarações da mesma testemunha, a instâncias da mandatária do Autor, registadas na mesma sessão, de 00:24:50 a 00:28:09: e transcritas supra.
19. Os factos 93, 94 e 103 das alegações da Ré foram incorrectamente julgados:
20. O facto 93 (O Autor reclama para si o uso da casa de morada de família até à partilha ou venda da mesma) decorre das alegações do próprio Autor e, como adiante se demonstrará, não foi infirmado pelo seu requerimento com a refª. 32570788, de 28 de Maio de 2019: pela sua relevância para a decisão da causa, tal facto deve ser dado como provado.
21. Também pela sua relevância para a decisão da causa, os factos 94 (O Autor mudou a fechadura de acesso à sempre aludida moradia, impedindo o uso daquela por parte da Ré), e 103 (A Ré está privada do acesso à casa de morada de família) devem ser dados como provados.
22. Tal resulta inequivocamente das declarações da testemunha (…) – (declarações gravadas no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:36:10) e, mais concretamente, desde 00:08:18 a 00:09:10 e transcritas supra.
23. Os factos 10 e 19 dos factos provados foram incorrectamente julgados.
24. A sentença recorrida deu como provado que o A. vive com os seus pais em Setúbal (facto 10) e que o Autor não tem interesse em voltar a habitar a casa que foi a morada de família (facto 19).
25. Tais factos são falsos, ao contrário do que o Autor pôs a circular – e a Ré inicialmente acreditou.
26. Para dar tais factos como provados, o Tribunal a quo fundamentou os mesmos na seguinte afirmação que atribui à testemunha (…), mãe do Autor: “confirmou que o filho vive actualmente em sua casa e que o mesmo não tem interesse em voltar a habitar a casa em que vivia com a esposa, ainda que pague as contas da água, luz e IMI”.
27. Ora, salvo o devido respeito, não foi isso que aquela testemunha efectivamente declarou – conforme declarações gravadas na sessão de 24 de Abril de 2019, no Habilus Media Studio, de 00:00:01 a 00:15:47, e mais precisamente de 00:05:38 a 00:06:16: e transcritas supra.
28. Apenas quando o Autor foi operado e, posteriormente, quando o pai dele foi operado é que a maior parte das vezes ficou na casa dos pais – mas apenas naqueles períodos!
29. Nunca a testemunha disse que o Autor vivia agora em casa dela.
30. Aliás, foi isso que a mesma testemunha esclareceu, a instâncias do Mandatário da Ré, na mesma sessão supra referida (cfr. de 00:10:51 a 00:12:13): e transcritas supra.
31. Em suma: de todas as declarações prestadas pela referida testemunha não resulta que o filho viva com ela. Mais: a mãe nem afirma que o filho não tenha interesse em viver na casa que foi morada de família, tendo respondido a esta questão com um lacónico, mas não esclarecedor “Talvez” (cfr. último registo indicado).
32. Em suma, com fundamento nestas declarações, nunca o Tribunal podia ter dado como provado que o Autor vive agora com os seus pais, em Setúbal.
33. Aliás, o facto dado como provado sob o nº 10 está em flagrante contradição com o facto dado como provado na segunda parte do nº 15 dos factos provados, ou seja, que é o Autor quem paga as despesas da água e energia eléctrica da casa em questão.
34. Cabe perguntar que despesas de água e energia eléctrica gera uma casa supostamente desabitada!...
35. Aliás, se o Tribunal recorrido tivesse conjugado as referidas declarações com outras que foram prestadas, nunca daria como provado aquele facto.
36. Vejam-se, por exemplo, as já referidas declarações da irmã da Ré, … (declarações gravadas no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:36:10) e, mais concretamente, desde 00:08:18 a 00:09:10: e transcritas supra.
37. Em suma, o Autor nunca deixou de habitar a casa de morada de família, como suporta as despesas de água e luz provocadas por tal ocupação, como ainda mudou a fechadura daquela habitação, passando a fazer da mesma uso exclusivo – o deve ser dado como provado.
38. E daí que o filho do Autor tenha dito, a instâncias da própria Mandatária do Autor, que a mãe tenha medo de ir à casa onde vivia a família por causa do pai:
39. Cfr. declarações do filho do casal (…), cujas declarações foram gravadas na sessão de 30.05.2019, no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:38:52, e mais concretamente de 00:31:50 a 00:33:17: e transcritas supra.
40. Não se percebe como é que uma pessoa que supostamente não habita uma casa pode causar medo a terceiros com a sua presença...
41. Mais: não se percebe como é que uma pessoa que não está interessada em morar numa casa impede a mulher de lá entrar, mudando a fechadura.
42. Os factos dados como provados sob os nº. 10 e 19 (este último no que respeita ao Autor) foram incorrectamente julgados, como resulta das declarações transcritas, sendo que outras não existem que possam sustentar os mesmos, pelo que devem ser dados como não provados.
43. Aliás, o próprio Tribunal considerou que o depoimento da testemunha (…), “não deixou de ser objetivo e, por isso, credível, quanto às questões de relevo para o que importa decidir” – pelo que não faz sentido que o mesmo possa ser cindido entre o que possa ser considerado relevante ou não!
44. Também no que toca às características do imóvel sobre cujo direito de utilização estava obrigado a pronunciar-se, o Tribunal a quo desconsiderou alguns factos essenciais para a decisão da causa.
45. Com efeito, para a fixação do montante da compensação peticionada pela Ré, é mister considerar todas aquelas características. Assim,
46. Os factos 83 a 85 das alegações da Ré foram incorrectamente julgados, a saber:
83. A moradia (correspondente à casa de morada de família) fica situada numa urbanização de moradias, a cerca de 6 kms do centro da cidade de Setúbal, numa zona com excelentes condições de conforto, tranquilidade, segurança e acessibilidade.
84. É dotada de todas as condições de conforto e de equipamentos da melhor qualidade, designadamente, lareira, cozinha equipada com máquina de lavar roupa (6 Kgs, Class AA Electronic. Mod L13, 1388 E, Tope FCE2), máquina de lavar louça (DW 76 OS), placa a gás, forno eléctrico, micro-ondas, todos estes electrodomésticos são encastrados na cozinha e da marca Teka, e ainda um frigorífico combinado Samsung.
85. A moradia encontra-se totalmente mobilada.
47. Tais factos devem ser dados como provados, (com excepção das marcas dos electrodomésticos), como decorre das declarações da testemunha … (declarações gravadas no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:36:10) e, mais concretamente, desde 00:20:47 a 00:22:47: e transcritas supra.
48. Também as declarações do filho do casal (…), cujas declarações foram gravadas na sessão de 30.05.2019, no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:38:52, e mais concretamente de 00:08:40 a 00:08:54, e transcritas supra, apontam no mesmo sentido:
49. Considerem-se também as declarações da mesma testemunha, de 00:11:23 a 00:13:06: transcritas supra.
50. Também os factos 88 a 91 das alegações da Ré foram incorrectamente julgados, a saber:
51. Na verdade, entre os factos alegados pela Ré e que o Tribunal a quo não deu como provados, contam-se os seguintes:
88. Não obstante o valor patrimonial, para efeitos fiscais, daquela moradia ser de € 150.714,00, o seu valor de mercado, neste momento é de cerca de € 250.000,00.
89. A par, sendo colocada no mercado de arrendamento, a mesma moradia pode ser de imediato arrendada por nunca menos de € 1.000,00 mensais.
90. Tudo conforme consulta realizada pela Ré e suas testemunhas em agências imobiliárias.
91. Aliás, a procura, quer para venda, quer para arrendamento de moradias deste tipo, com estas características e localização não tem parado de aumentar no mercado local e nacional.
52. Tais factos devem ser dados como provados, como decorre das declarações da testemunha … (declarações gravadas no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:36:10) e, mais concretamente, desde 00:23:11 a 00:24:40: e transcritas supra.
53. Também as declarações do filho do casal (…), cujas declarações foram gravadas na sessão de 30.05.2019, no Habilus Media Studio 00:00:01 a 00:38:52, e mais concretamente de 00:08:40 A 00:08:54, e transcritas supra, apontam no mesmo sentido:
54. Considerem-se também as declarações da mesma testemunha, de 00:13:07 a 00:15:45: transcritas supra.
55. O incorrecto julgamento da matéria de facto supra referida teve reflexo directo na decisão de direito, inquinando a mesma. Mas não só. Na verdade:
56. Em 28 de Maio de 2019, a dois dias da data em que o filho foi ouvido e terminou a produção de prova, veio o A. juntar aos autos uma declaração/proposta que não deveria merecer a mínima credibilidade por parte do Tribunal ou, no mínimo, devia ter sido sujeita a prova adicional.
57. Disse o A. (refª. 32570788, de 28 de Maio de 2019) «Supervenientemente (...): (a) Em virtude de se encontrar sozinho e sem qualquer companhia; (b) Porque aquela que era a casa de morada de família é grande, com dois pisos; (c) Porque foi sujeito a uma cirurgia e porque os seus progenitores se encontram doentes e idosos e o A. se encontra muito tempo na casa destes, muito embora todos os dias esteja na casa de morada de família; (d) Porque nada obstaculiza que embora separados de facto, não coabitem sob o mesmo tecto, nada impede que a Ré passe também a viver na casa em causa, conjuntamente com A., a qual poderá ser atribuída a ambos até à partilha».
58. Ora, o Tribunal a quo, perante esta declaração/proposta, que não é sustentada em qualquer tipo de prova, e à revelia de toda a prova testemunhal produzida antes e depois da respectiva junção aos autos, não só deu como provado que o Autor não tem interesse em voltar a habitar a casa que foi a de morada de família (facto nº 19 dos factos provados), como, na fundamentação de direito, consignou:
“Quanto ao Autor, por seu turno, é distinta a situação. Com efeito, se num primeiro momento processual o mesmo manifestou a vontade de lhe ver reconhecido o direito de utilização dessa casa, sem o pagamento de qualquer contrapartida monetária, posteriormente e porque a vida é dinâmica, deixou de habitar a casa, passando a viver com os seus pais – situação que se mantém no presente –, não manifestando agora qualquer interesse em dispor, em exclusivo, do direito de habitar aquela casa.
Ora, se assim é, nem a Ré, nem o Tribunal lhe pode impor que volte a habitar a casa que foi a da sua família, já que tal questão se insere na sua esfera privada de direitos. Por isso, resta concluir que, no presente caso e no presente momento, não deve ser atribuído a nenhum dos cônjuges o direito em exclusivo de habitar a casa, sem prejuízo de a ambos assistirem os direitos inerentes à qualidade de proprietários”.
59. Cumpre antes de mais salientar que tal declaração ou proposta não constitui sequer uma alteração do pedido inicialmente formulado pelo Autor.
60. Entendamo-nos: no referido requerimento do A., este não diz que não tem interesse em voltar a habitar a casa que foi a morada de família.
61. Pelo contrário, confessa que todos os dias está naquela casa, ainda que passe tempo na casa dos progenitores, porque foi sujeito a uma cirurgia e porque os seus progenitores se encontram doentes e idosos.
62. E, por isso, afirma que nada impede que a Ré passe também a viver na mesma casa, conjuntamente com o Autor as expressões “também” e “conjuntamente” não podem ter outro sentido que não aquele que a língua portuguesa lhes atribui...
63. Ou seja, o Tribunal conformou-se com um desejo do Autor que é a reposição o statuo quo antes da separação, como se face aos motivos da separação alegados pela Ré, tal desejo não fosse, no mínimo, a reposição de uma absurda violência.
64. O Autor não se desinteressou de morar na casa onde confessa estar todos os dias, da qual mudou a fechadura e da qual paga os consumos de água e luz que a sua ocupação provoca.
65. O que o Autor quer é que a Ré passe também a viver naquela casa, conjuntamente com ele!
66. Para se perceber o absurdo que gera a decisão do tribunal ao não atribuir ao Autor o uso da casa de morada de família, consignando a possibilidade de uso conjunto para ambas as partes, teria sido necessário atender à factualidade alegada pela Ré quanto às razões da separação – mas que o Tribunal não atendeu.
67. A verdade é que tais razões são essenciais para a justa decisão da causa.
68. A solução proposta pelo Autor é um sofisma: ele sabe que a Ré jamais voltará a coabitar com ele, pelo mau viver que ele lhe inflige e porque tem medo dele.
69. Em bom rigor, o que o Autor pretende é continuar a fazer um uso exclusivo de facto da casa de morada de família, mas sem pagar à Ré qualquer compensação por esse uso.
70. A manter-se a sentença recorrida, estaria encontrado o meio ideal para defraudar a lei, em todos os casos em que um dos cônjuges não pretende compensar o outro pelo uso exclusivo que faz da casa de morada de família: bastaria propor ao Tribunal que “nada impede” que ambos voltem a coabitar!
71. Do exposto resulta que, os factos articulados pela Ré nas suas alegações (refª. 31037231, de 19/12/2018) sob os n.os 1 a 55, são essenciais para a justa decisão da causa e para atender ao seu corolário: o Autor foi transformando a vida conjugal num inferno, tornando a coabitação insuportável – o que o Tribunal, com a sua decisão, não deve contribuir para repor.
72. Proferir uma decisão que nada decide, já que a única solução que deixa em aberto é o regresso a essa coabitação, é, nos seus efeitos práticos, um non liquet de todo inaceitável!
73. A sentença recorrida violou o disposto no nº 2 do artigo 608º e no nº 1 do art. 609º do CPC, bem como o disposto nos artigos nº 2 do artigo 1779º e nos nºs 3 e 4 do artigo 1778º-A, na parte aplicável, todos do Código Civil, ao não fixar as consequências do divórcio quanto ao direito de utilização da casa de morada de família, segundo os pedidos formulados pelas partes.
74. Deve ser revogada e substituída por outra que, julgando como não provados os factos 10 e 19 supra referidos (incorrectamente considerados provados pelo Tribunal a quo), e julgando como provados os factos alegados pela Ré supra referidos – e em conjugação com os restantes dados como provados pela primeira instância – atribua ao Autor o direito de utilização exclusiva da casa de morada de família – que ele tem e mantem desde que mudou a fechadura da mesma - atribuindo à Ré, por efeito de tal uso, uma compensação mensal de valor não inferior a € 500,00 mensais, até à venda ou partilha daquela casa.
Assim e com o douto suprimento de Vossas Excelências, por ser de inteira e sã Justiça!».
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Houve lugar a resposta do recorrido, que defende a manutenção da decisão proferida pelo Juízo de Família e Menores de Faro. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro de julgamento na:
(i) definição dos factos apurados.
(ii) na subsunção jurídica realizada, por não ter onerado o requerido com metade do valor locativo da antiga casa de morada de família.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada:
Com relevância para a acção, provaram-se os seguintes factos:
1. O Autor (…) casou com a Ré (…) a 21 de novembro de 1987, sem convenção antenupcial.
2. Autor e Ré têm um filho em comum, maior de idade, atualmente residente na Irlanda.
3. Autor e Ré viviam juntos numa moradia sita na Urbanização Quinta da (…), Praceta do (…), nº 6, em (…).
4. A Ré saiu da casa atrás identificada no dia 3 de setembro de 2018, com a intenção de deixar de viver com o seu marido, levando consigo bens pessoais.
5. Desde esse dia, a Ré não voltou a viver com o Autor, nem naquela casa, nem em qualquer outro local.
6. Desde então, vive com a sua irmã, em Aires, na casa a esta pertencente, partilhando com ela as despesas domésticas.
7. Em dezembro de 2015, a Ré foi abrangida por despedimento coletivo por parte do Banco (…), onde trabalhava, tendo recebido uma indemnização no valor de cerca de € 91.000,00.
8. A Ré recebeu subsídio de desemprego no valor diário de € 34,94 até 3 de julho de 2016, de € 31,60 até 31 de dezembro de 2017, de € 35,74 até 31 de dezembro de 2018 e de € 36,31 até 3 de março de 2019.
9. Desde então, a Ré encontra-se desempregada e não aufere rendimentos próprios.
10. O Autor vive com os seus pais, em Setúbal.
11. Em janeiro de 2018, o Autor recebeu uma indemnização no valor de € 79.846,72 por extinção do posto de trabalho e, atualmente, recebe subsídio de desemprego, no valor de € 1.089,30 mensais.
12. Autor e Ré pretendem divorciar-se um do outro.
13. Autor e Ré têm património comum, constituído por um prédio urbano (a moradia que foi a casa de morada de família), sito na Urbanização Quinta da (…), Praceta do (…), nº 6, em (…), com o valor patrimonial de € 150.714,00 (determinado em 2016), com a área total de 169 m2, composto por um edifício de cave para garagem, rés-do-chão, 1º andar e logradouro.
14. Para além disso, o casal é proprietário de um apartamento sito na Rua (…), em (…), correspondente à fração I do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o nº (…), inscrito na matriz predial urbana da freguesia de (…), com a área de 45,2000m2 e com o valor patrimonial de € 36.499,40 (determinado em 2018).
15. A moradia identificada em 13 encontra-se paga e livre de encargos, sendo as despesas de água e energia elétrica da mesma suportadas pelo A.
16. O apartamento identificado em 14, sito em (…), encontra-se arrendado a terceiros, pela renda mensal de € 300,00.
17. Para além dos referidos imóveis, Autor e Ré têm ainda outro património comum, constituído, designadamente, pelo recheio dos mesmos, por veículos automóveis e ativos bancários.
18. Autor e Ré prescindem de receber alimentos recíprocos, após o divórcio.
19. Actualmente, nem o Autor, nem a Ré têm interesse em voltar a habitar a casa que foi a de morada de família.
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3.2 – Matéria de facto não provada[1]:
Inexiste.
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IV – Fundamentação:
4. 1 – Matéria de Facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas dadas a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de primeira instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
A discordância da recorrente assenta em três pilares o da residência do Autor se situar na antiga casa de morada de família ao contrário daquilo que apurou a Primeira Instância, os aspectos relacionados com o valor locativo da moradia familiar e os factos relativos à cessação da coabitação e aos dissídios familiares instrumentais a essa ruptura.
Começando por este último conjunto de factualidade importa salientar que os factos relacionados com a ruptura conjugal e os motivos associados à mesma não têm qualquer préstimo à justa resolução do litígio, tal como foi sucessivamente reiterado pela Meritíssima Juíza «a quo» no decurso do julgamento.
Na realidade, nos termos da lei cabe ao Tribunal decidir tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos e quaisquer outras razões atendíveis. E na esfera de previsão da norma não existe lugar para este parâmetro de avaliação, em especial num quadro onde manifestamente a recorrente afirma e reafirma que não pretende ocupar a antiga casa de morada de família. Ao prescindir assim de exercer o eventual de habitação que lhe poderia ser deferido toda essa factualidade é supérflua à questão da definição de uma compensação pelo uso exclusivo por parte do outro ex-cônjuge.
Desta forma, o Juízo de Família e Menores de Setúbal fez um juízo adequado quando não incluiu a factualidade correspondente no acervo dos factos provados e não provados[2] [3]. Em acréscimo, em sede de recurso, face ao objecto da impugnação por via recursal, essa constatação reforça a manifesta inidoneidade do referido conspecto para alterar o conteúdo da decisão tomada pela Primeira Instância.
Traduzindo, ainda que o Tribunal de Recurso se pronunciasse sobre esses factos, os mesmos – isoladamente ou em conjunto com outros – não tinham qualquer virtualidade na alteração do veredicto formulado pelo julgador «a quo» e a actividade dos Tribunais Superiores está jungida por um critério de utilidade e de prestabilidade que aqui não encontra eco.
A factualidade com evidente interesse e que só lateralmente foi abordada em sede de julgamento está relacionada com a circunstância do recorrido ocupar ou não ocupar a casa e, em função disso, na positiva, estar vinculado a transferir um montante para a esfera patrimonial do ex-cônjuge decorrente da utilização exclusiva dos bens comuns do extinto casal.
O Tribunal «a quo» fundamenta a não ocupação nas declarações da mãe do recorrido. Efectivamente, a testemunha (…) confirmou que «o filho vive atualmente em sua casa e que o mesmo não tem interesse em voltar a habitar a casa em que vivia com a esposa, ainda que pague as contas da água, luz e IMI».
A discordância manifestada assenta basicamente na chamada à colação das prestações probatórias tomadas a essa testemunha (…), bem como a (…) e a (…), respectivamente irmã da recorrente e filho do Autor e da Ré. E, num patamar avaliativo acessório, no conteúdo das facturas relacionadas com as despesas domésticas de água e luz.
Ouvida a prova, o teor do depoimento colhido a (…) é praticamente omisso a propósito deste item e a restante parte da audição do suporte magnetofónico é insusceptível de alterar o raciocínio tomado pela Primeira Instância.
A testemunha (…) confirmou que «acha que não habita lá» (sensivelmente ao minuto 27 da respectiva prestação) e a testemunha (…) afirma que o filho foi viver para sua casa por factos relacionados com a realização de uma operação pessoal e também de uma intervenção cirúrgica realizada pelo pai. É certo que, aquando do contra-interrogatório, a instâncias do mandatário da recorrente, a testemunha não foi muito esclarecedora sobre a ocupação mas não é possível associar temporalmente aquilo que disse ao actual momento histórico.
Para além disso, não existe qualquer em flagrante contradição entre os factos identificados em 10 e 15 nem a documentação apresentada permite extrair uma conclusão negatória. Na verdade, a circunstância do recorrido pagar as despesas da água e energia eléctrica da casa em questão não significa que se esteja perante um quadro de utilização exclusiva da antiga casa de morada de família por parte de (…). E, finalmente, mesmo que não existissem consumos, a facturação incluiria os valores relacionados com a simples contratação dos serviços e demais adicionais.
A declaração junta aos autos em 28/05/2019 não constitui um meio de prova, não serviu de fundamento à fixação de qualquer facto e a respectiva interpretação não tem a idoneidade de justificar a modificabilidade da matéria apurada.
Aliás, a questão da utilização da residência por parte do ex-cônjuge marido foi uma matéria em que ambas as partes não investiram no decurso da audiência de julgamento, preocupadas que estavam em encontrar culpados e causas de ruptura da vida conjugal.
Não existe, assim, por esta via, fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil, porquanto a modificabilidade da decisão de facto não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova.
Nesta ordem de ideias, o conhecimento dos demais pontos do recurso incidente sobre a matéria de facto perde a pertinência. Com efeito, não estando em causa a aferição da capacidade económica na sua associação com qualquer pretensão de prestação de alimentos, os factos relacionados com a situação financeira só teriam sustentação se ficasse comprovada uma ocupação de facto por parte de um dos litigantes. Só nesse cenário é que seria possível determinar o pagamento de contrapartida ao comproprietário do imóvel.
E, por último, nada se provou quanto ao valor locativo da casa. A testemunha (…) disse desconhecer o valor justo da renda e o filho do casal não estava munido de informação que lhe permitisse formular um juízo estruturado sobre esta matéria. E, por decorrência, carece assim de importância deixar exarado qualquer elemento relativo às características da habitação ou do valor de mercado dessa moradia.
De modo reiterado, os Tribunais Superiores entendem que os recursos sobre a impugnação da matéria de facto têm sempre carácter ou natureza instrumental, devendo as questões submetidas à apreciação poder repercutir-se, de forma útil e efectiva, na decisão a proferir pelo Tribunal «ad quem», de modo alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto. De outro modo, no plano formal, não haverá interesse processual em promover a revisão dos factos controvertidos.
Nestes termos, mostra-se assim perfeitamente consolidada a matéria de facto apurada e é com base na mesma que será realizada a operação de subsunção ao direito.
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4.2 – Erro na apreciação do direito:
A casa de morada de família goza de protecção especial, revelada e suportada em diversos instrumentos legais destinados a preservar os interesses dos ex-cônjuges e filhos consigo conviventes, através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição, que poderá inclusivamente passar pela constituição judicial de um arrendamento a favor de um dos ex-cônjuges, independentemente da natureza de bem comum ou próprio do outro[4].
A fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último[5].
Pese embora esta dicotomia procedimental, no plano substantivo existe uma comunhão dos critérios a que o juiz deverá atender para atribuição da casa de morada de família e que são os referidos no artigo 1793º[6] do Código Civil. Assim, aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do supra mencionado preceito, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105º do mesmo Código, deve deduzir o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
O artigo 1793º do Código Civil visa a protecção da casa de morada de família e do cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, não se destinando, pois, a sancionar o culpado pelo divórcio ou a compensar o inocente, nem a nela manter ou dela expulsar o cônjuge ou o ex-cônjuge que nela está, nem a expulsar um para nela ficar o outro.
Nos termos da legislação vigente cabe ao Tribunal decidir tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos e quaisquer outras razões atendíveis, como anteriormente já se avançou.
A lei não estabelece qualquer hierarquia entre os factores ou elementos contido na enunciação legal, mas isso não significa que uma certa diferenciação hierárquica não haja de ser estabelecida pelo Tribunal, em cada caso concreto e segundo aquilo que o bom senso indicar como solução mais justa[7].
Compete ao ex-cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso[8].
A casa de morada de família deverá ser atribuída em função das necessidades de cada um dos (ex) cônjuges, assumindo particular relevância o «interesse dos filhos», devendo privilegiar-se, na ausência de prova da situação patrimonial das partes, aquela a quem os filhos menores do casal se encontram confiados e com quem residem[9] [10].
No presente recurso a recorrente pretendia que fosse atribuído ao Autor o direito de utilização exclusiva da casa de morada de família e que a si fosse deferida uma compensação mensal de valor não inferior a e 500,00 mensais, até à venda ou partilha daquela casa.
É indiscutível que até realização da partilha de bens comuns, a decisão de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos ex-cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao ex-membro do casal privado do uso daquele bem ou, alternativamente, a definição modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios.
Porém, no caso concreto, para além de não existirem filhos menores, a recorrente não necessita da casa e não conseguiu demonstrar que o recorrido a utiliza de forma exclusiva. Assim, apenas a alteração futura do tipo de ocupação é que poderá determinar a modificação do anteriormente decidido pelo Juízo de Família e Menores de Setúbal.
Tal como já foi defendido neste Tribunal da Relação de Évora, o regime decorrente do artigo 931º do Código de Processo Civil (aplicável no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento – cfr. artigo 1778º-A, nº 3, do Código Civil – ainda que este emane, por convolação, do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges), não repele nem contende com o processo de jurisdição voluntária a que alude o artigo 990º do CPC, que está ao dispor dos interessados ou ex-cônjuges e cujos efeitos operam dissolvida que esteja a união conjugal ou de facto[11] [12].
Na realidade, não se provando a necessidade da habitação a atribuição da casa de morada da família pode ser alterada com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a modificação da situação vigente, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão judicial já não acautele ou deixe de precaver, com equidade, os interesses de um dos ex-cônjuges[13].
Assim, confirma-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso apresentado.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, julga-se improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 30/01/2020
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário

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[1] Ficou consignado na sentença recorrida que: «Para além dos factos atrás descritos, não importa referir outros que foram alegados mas que não apresentam qualquer relevância para as questões a decidir, como sejam os relacionados como as causas do abandono da casa de morada de família por parte da Ré».
[2] Os factos relativos à cessação da coabitação e aos dissídios familiares estavam enunciados nos pontos 2, 3, 4, 32, 33, 35, 44 e 47 a 55 do articulado de alegações formulado antes do julgamento.
[3] Cenário diferente poderia ocorrer se num contexto de violência doméstica o outro cônjuge pretendesse exercitar o direito a permanecer na habitação.
[4] Conforme acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2017 in www.dgsi.pt.
[5] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/04/2012, de 13/10/2016, de 23/11/2017, publicados em www.dgsi.pt.
[6] Artigo 1793.º (Casa de morada da família):
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/11/2008, in www.dgsi.pt.
[8] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/04/2015, in www.dgsi.pt.
[9] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/05/2015, in www.dgsi.pt.
[10] Pereira Coelho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, n.º 122, Ano 1989 – 1990.
[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/07/2019, in www.dgsi.pt.
[12] Este acórdão foi comentado por Miguel Teixeira de Sousa, no Blog do Instituto Português do Processo Civil, jurisprudência de 2019 (155), apoiando-se na posição de Rita Lobo Xavier, Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais.
[13] Em sentido próximo, pode ser consultado o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/02/2013, in www.dgsi.pt.